foto: Patrick Marinho
Onde há mais cidade: na Barra da Tijuca ou na Maré? Tenho feito essa pergunta em muitos lugares e as pessoas, em geral, se surpreendem com ela. Afinal, para a grande maioria, seria óbvio reconhecer o território de moradia de pessoas de classes média ou alta como sinônimo de cidade; assim como identificar uma favela como a Maré como a expressão da “não-cidade”. Minha argumentação vai no sentido contrário e ela se sustenta nas noções de Urbe e de Polis.
Tradicionalmente, os termos Urbe – de origem latina - e Polis – de origem grega - estão associados à cidade, de forma indistinta. Mas fazer sua distinção nos ajuda a construir uma nova forma de definir a cidade contemporânea, e, por extensão, compreender o lugar das favelas/periferias nela. O termo Urbe nos remete à materialidade da cidade: seus equipamentos, serviços e construções físicas. Como o Estado brasileiro, em geral, age historicamente para beneficiar as camadas mais ricas economicamente da população, ele aloca mais equipamentos e serviços públicos nos territórios onde aquelas vivem: saneamento, água, coleta de lixo, arborização, asfaltamento, energia, escolas, instituições culturais, segurança pública, enfim, os serviços que as pessoas demandam na vida urbana são prioritariamente oferecidos pelo Estado (e pelo Mercado) em determinados territórios, tornando-os privilegiados em relação àqueles onde vivem as populações subalternizadas. Logo, é correto dizer que a Barra Tijuca, assim como os principais bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, tem/é mais Urbe do que as favelas cariocas.
Todavia, a cidade não é apenas sua materialidade, sua Urbe. Ela também é suas relações sociais, as formas de contato e ação comum no espaço público, as relações de cooperação e solidariedade, enfim, as relações comunitárias. Tudo isso se revela como Polis. Essas relações eram o espírito central da cidade grega, por exemplo, embora abrangesse apenas uma parte da população. Logo, quando pensamos em Polis, onde há mais cidade: na favela ou no bairro de classe média? Na Barra da Tijuca ou na Maré?
Os moradores e moradoras dos bairros mais ricos, em geral, vivem experiências individualizadas de cidade. Suas relações sociais são funcionais, definidas a partir das regulações dos órgãos do Estado e do Mercado, sendo mediadas pelo dinheiro, em geral. Assim, as experiências afetivas desses grupos sociais são restritas, comumente, aos espaços domésticos, havendo uma relação formal e distante com o espaço público, o espaço da rua[1].
Essa redução da experiência de cidade na perspectiva apenas da Urbe faz com que muitas pessoas residentes nos bairros mais privilegiados economicamente tenham uma representação do mundo citadino no qual este se manifesta como um território hostil, no qual as pessoas se sentem inseguras e temerosas em relação à outra, à diferente, especialmente as empobrecidas. Não há sentimento de pertencimento, desejo de convivência na diversidade, de forma abrangente, mas uma vivência marcada pela particularização física e afetiva.
No caso da Favela e de outros territórios periféricos, ao contrário, as formas de sociabilidade, cooperação e vivência no lugar comum, nas áreas públicas, continuam se fazendo presentes. Seja em função de necessidade econômica; formas arquitetônicas das moradias e estruturas viárias; experiências comuns de luta pela garantia de seu espaço e outros direitos básicos, o fato objetivo é que as periferias se constituem, acima de tudo, como Polis. Nelas, se torna possível que as pessoas consigam maximizar seus poucos recursos materiais e seus repertórios, ampliando as possibilidades de experienciar a cidade, apesar da inação do Estado em respeitar seus direitos fundamentais e do Mercado as tratar como consumidoras de nível inferior. Assim, a dimensão política da vida permite que as pessoas periféricas lidem de forma inovadora, inventiva e participativa com as restrições de equipamentos, serviços e recursos econômicos presentes em seus cotidianos.
Logo, para concluir, uma cidade plena demanda que Urbe e Polis se façam presentes de forma universal, em todos os seus territórios e para o conjunto de cidadãos e cidadãs. Para isso acontecer, cabe reconhecer as contribuições que as favelas e outras periferias das cidades podem oferecer, abrir espaço para que essas vivências sejam reconhecidas. O que demanda a construção de novas formas de mobilidade no mundo social: física, econômica, cultural e, sobretudo, simbólica: o direito de todas as pessoas se sentirem pertencentes à cidade, com ela se responsabilizarem e nela buscarem viver plenamente nas singularidades e pluralidades que a define.
[1] Roberto Damatta irá descrever esse tipo de relação com acuidade em seu principal livro: “ A casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil”. Ed. Rocco.
Sobre o autor:
Fundador do Observatório de Favelas e do Instituto Maria e João Aleixo
http://lattes.cnpq.br/6625117428240446